sábado, 6 de novembro de 2010
SÃO GONÇALVES: LONGOS LONGOS SÃO OS CAMINHOS
A São Gonçalves pediu-me para a apresentar. Desde o início me pareceu um contra-senso. Vê-se pela composição da sala. São os companheiros e amigos da autora.A minha presença singelamente se dispensaria.
Colocado nesta posição que agora sabeis de pouco à vontade, e porque ao convite disse sim – e poderia dizer não? – procurei auxílio em irrefutáveis mestres da eloquência e da palavra, que convocados me acompanharam por inteiro e sem rebuço.
Bertold Brecht nas “Histórias do Sr. Keuner” havia-me ensinado sobre a amizade, mediante a concisão colhida na sabedoria oriental:
"Perguntaram um dia ao senhor K. “Que fazes quando tens um amigo” “Faço-lhe um retrato e faço com que ele se lhe pareça” “Quem, o retrato” “Não, o amigo” respondeu o senhor K.
A São Gonçalves (a sãozinha, pseudónimo com que escrevia e escreve no site Luso-poemas que ambos frequentamos) passou, ao fim de algum tempo, a percorrer caminhos em que nos cruzávamos frequentemente a propósito dos interesses comuns em que nos movíamos: a harmonia das palavras, a pluralidade de sentidos, a beleza procurada, mais e mais. E aqui chegámos, neste dia que é ponto de chegada e de partida, tempo de Poesia, nas palavras de António Gedeão:
Todo o tempo é de poesia.
Desde a névoa da manhã
À névoa do outro dia.
….
Como quando São Gonçalves a propósito de mais um poema meu dedicado a Cibele, figura mitológica, que tomei como pretexto em tantos ocasiões, se sentiu tentada e à vontade para escrever com espontaneidade e beleza:
A seara está madura
os frutos prontos
a ser colhidos
nas mãos
da amizade
a ternura
dos amigos
que se deram.
I
Do olhar de uma
mulher
a luz que os homens
negaram
no corpo da musa
cibele
o renascimento
do amor almejado.
II
Mas é na hora
da partida
que o amor
mais se sente
da poesia
e do poeta
que marca
a alma
da gente.
Quando a poetisa me contactou telefonicamente e por mail sobre a sua intenção de publicar um livro e implicitamente saber a minha opinião, lembrei-me de Rilke, nas suas cartas a um jovem poeta, e disse-lhe o mesmo, por palavras chãs, que são as minhas:
“Pergunta-me - escreveu Rilke - se deve editar o livro. Pergunta-mo a mim – depois de o ter perguntado a vários. Doravante (visto que me permite aconselhá-la), peço-lhe que renuncie a tudo isso. (…)
Ninguém pode aconselhá-la nem ajudá-la – ninguém! Há só um caminho: entre em si própria e procure se a necessidade tem raízes no mais profundo do seu coração. Confesse-se a fundo: “Morreria se não me fosse permitido escrever?” Isto. Sobretudo: na hora mais silenciosa da noite, faça a si mesmo esta pergunta: - Sou realmente obrigada a escrever?» - Examine-se a fundo até encontrar a mais profunda resposta. Se esta resposta for afirmativa, se puder fazer face a uma tão grave interrogação com um forte e simples «Devo», então construa a sua vida segundo esta necessidade. A sua vida, mesmo na sua hora mais indiferente, mais vazia, deve tornar-se sinal e testemunho de tal impulso».
São Gonçalves é uma talentosa poetisa, dotada de uma escrita límpida e despojada, a quem agradeço a amizade e com quem partilho estas palavras que guardo com secreto desvelo:
0 sonho, Cibele, é uma taça, uma flor ignota, um desejo imenso
que persiste, mesmo se a dor ao colhê-lo o ignore. Cativo, neste lugar,
perco a exacta noção do ser e do não ser, do tudo ou do nada,
( se é que o todo pode estar circunscrito à palavra…)
Procurarás as estrelas, que iluminarão o caminho. Se solitário, a luz é mais intensa.
Despojada de tudo, encontrarás o segredo das palavras:
ternura, amor, ou apenas sede e um sereno gesto a partilhar
na colheita de uma rosa brava.
Eis o retrato, como diria o sr. K. que desenhei de São Gonçalves, seguro de que ela se lhe parece. Foi uma honra e um prazer.
Arlindo Mota
30 Outubro 2010
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