sábado, 6 de novembro de 2010

EUFRÁZIO FILIPE: PARA LÁ DO AZUL

PREFÁCIO


Se de algum modo tentássemos surpreender o que de mais significativo existiria na poesia de Eufrázio Filipe, com a qual tomei contacto há mais de vinte anos, coincidente com a publicação do livro “Mar Arável”, é a sua obstinada coerência por uma matriz que se assume, na plenitude da sua subjectividade, na construção de um mundo visto de dentro, mundo singular e inimitável, a que só o sentimento dá acesso. Mas um mundo que, nem por isso, corta as amarras com o mundo exterior. Atente-se como Eufrázio Filipe, fiel aos seus pressupostos poéticos, aborda o 25 de Abril no poema Festa de Belos Vendavais:

“Estávamos num conflito de areias
desterrados no deserto
quando choveu
nas nossas bocas
uma certa água
e os cravos povoaram
as ruas (…)

mas és tu Abril
no mais íntimo dos silêncios
a minha festa de belos vendavais.”

Eufrázio Filipe é um autor com vários livros publicados. A sua poesia constitui, podemos assim afirmá-lo com segurança, um mundo que se ergue assente em firmes esteios simbólicos, que se estriba e mergulha raízes em referenciais que lhe são familiares. A sua linguagem confere-lhe uma unidade, que é o sentido e a forma de que se alimenta a sua experiência estética. Será, em vão, procurar fora do universo da suapoesia o desvendamento do que aí se dá: ela não é transitiva, é preciso que a atenção incida sobre si própria.
Em todo o livro, o autor estabelece um subtil diálogo, mais pressentido que nomeado, entre um “eu” e um “tu” onde se respira uma delicada sensualidade que percorre quase todos os poemas e onde as palavras vão, serenamente, desenhando uma trigonometria imperiosa dos sentidos:
“Os barcos ainda não tinham
abandonado o chão das água
já vergavas o corpo (…)
e deixavas os peixes saltarem
nos teus olhos prateados (…)
mas só quando a desoras
te abres em flor e desnudas
entregas o resto das forças
a um beijo”

(Oculta no Grasnar das Aves)

Ressalta igualmente uma dimensão lírica na sua poesia: dela se desprendem os afectos do autor, num trabalho sobre a língua, com os seus ritmos e sonoridades. Como escreveu Paul Valéry, a poesia é uma “hesitation prolongée entre le son et le sens” (a poesia é uma hesitação prolongada entre o som e o sentido”) querendo realçar o prazer do leitor na procura do segredo das palavras, mistério que o autor guarda, ciosamente, no interior do seu imaginário.
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Quase diário íntimo, este livro de Eufrázio Filipe está recoberto de imagens cuja familiaridade reenvia à infância e à geografia – precisa herança onde emergem frequentemente vocábulos que localizam o autor, como: “azul, água, mar, rio, barco, vento, brisa, praia, seixos, aves, rota, tremulina”, entre outros – que faz da sua obra uma poética inquestionavelmente adquirida tanto na cultura - pois Eufrázio Filipe deixa antever a leitura de muitos poetas, como Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen, David Mourão -Ferreira - como na aprendizagem do quotidiano:
“Mas tu sabes que não existem
barcos alados
Talvez por isso ainda te veja
Em preces
Sentada nas areias
a levar a boca à foz do rio
até o meu barco
Era mais azul que o céu”

(Mais Azul que o Céu)


É comum afirmar-se que a linguagem poética é polissémica, que nos reenvia a vários sentidos. E esta dimensão semântica está bem presente na poesia do autor que através, da associação de palavras, estilhaça uma esperada previsibilidade, como quando escreve em As Palavras Não Sabem Respirar por Guelras:

“Todas as palavras são parcas
mesmo as que se afogam
por não saberem respirar por guelras

foi assim que te dei um abraço
que não era um abraço
mas uma transfusão de sangue”

Eufrázio Filipe, seguro do seu rumo, acolhe-se frequentemente na ambiguidade desafiando o leitor a desocultar o sentido produzido pelas rupturas semânticas que têm em vista a criação de uma atmosfera poética própria:

“Amanheci
a desenhar
o teu corpo
para desfolhar
uma
rosa

Porque não uma rosa?
Todas as flores
se desfolham
também tu rosa”

(Rosa Folheada)

Sempre estimulando a imaginação do leitor, a sua poesia não abdica dessa qualidade afectiva que a impregna, marcada que está por uma refracção subjectiva que bastas vezes desagua próxima da emoção , como em Vagaroso Instante:

“Logo hoje que era preciso
Rasgar destinos
Ajudar
O grito das marés (…)

Logo hoje
Subi às colinas
E adormeci
Só para te ver
Vagaroso instante.”

Essa subjectividade e amálgama de confluências que caracterizam a arte dos nossos dias, levou Miró a dizer “Eu não estabeleço nenhuma diferença entre pintura e poesia. Acontece-me frequentemente ilustrar as minhas telas com frases poéticas e vice-versa”. Ou Picasso quando, no mesmo sentido, escreve: “No fim de contas, as artes fundem-se numa só. Pode-se escrever uma pintura em palavras como se pode pintar sensações num poema”. Nessa direcção vai Eufrázio Filipe quando escreve (Risco Azul):

“Traço na água
um risco azul

Solto-lhe as velas
do silêncio

Assim rasgo uma pedra
com vida por dentro”

Logo no início do livro, o autor faz uma incursão por um território que não lhe é comum (aliás, é o único poema desse género que integra o livro): a prosa poética. Lê-lo, é constatar que a liberdade de que goza o poeta lhe permite, com naturalidade, transgredir a norma da prosa, que é a da comunicação fiável e segura: a forma como Eufrázio Filipe utiliza a sintaxe é, por si mesma, portadora de “poeticidade”:

“(…)
E agora? Que farás para a água te lavar os pés? Que farás para o mar não te abandonar? Que farás para o conquistares? Que farás para as uvas amadurecerem e as andorinhas regressarem?
Que farás de ti, pelas outras estrelas?”

(Que Farás de Ti?)

Retenho-me, nesta caminhada que já vai longa, neste último verso, para evidenciar, que apesar de Eufrázio Filipe se sentir à vontade na linguagem que os recurso poéticos contemporâneos lhe facultam, a sua poesia não padece da gratuitidade do formalismo, ela, na sua subjectividade, continua sibilinamente a reenviar ao mundo e a exigir do leitor olhos bem atentos para uma compreensão cabal do seu imaginário poético, que é rasgadamente fecundo e comprometido.

arlindo pato mota
fevereiro 2010

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