sábado, 6 de novembro de 2010

SÃO GONÇALVES: LONGOS LONGOS SÃO OS CAMINHOS


A São Gonçalves pediu-me para a apresentar. Desde o início me pareceu um contra-senso. Vê-se pela composição da sala. São os companheiros e amigos da autora.A minha presença singelamente se dispensaria.

Colocado nesta posição que agora sabeis de pouco à vontade, e porque ao convite disse sim – e poderia dizer não? – procurei auxílio em irrefutáveis mestres da eloquência e da palavra, que convocados me acompanharam por inteiro e sem rebuço.
Bertold Brecht nas “Histórias do Sr. Keuner” havia-me ensinado sobre a amizade, mediante a concisão colhida na sabedoria oriental:
"Perguntaram um dia ao senhor K. “Que fazes quando tens um amigo” “Faço-lhe um retrato e faço com que ele se lhe pareça” “Quem, o retrato” “Não, o amigo” respondeu o senhor K.

A São Gonçalves (a sãozinha, pseudónimo com que escrevia e escreve no site Luso-poemas que ambos frequentamos) passou, ao fim de algum tempo, a percorrer caminhos em que nos cruzávamos frequentemente a propósito dos interesses comuns em que nos movíamos: a harmonia das palavras, a pluralidade de sentidos, a beleza procurada, mais e mais. E aqui chegámos, neste dia que é ponto de chegada e de partida, tempo de Poesia, nas palavras de António Gedeão:
Todo o tempo é de poesia.
Desde a névoa da manhã
À névoa do outro dia.
….

Como quando São Gonçalves a propósito de mais um poema meu dedicado a Cibele, figura mitológica, que tomei como pretexto em tantos ocasiões, se sentiu tentada e à vontade para escrever com espontaneidade e beleza:
A seara está madura

os frutos prontos

a ser colhidos

nas mãos

da amizade

a ternura

dos amigos

que se deram.

I

Do olhar de uma

mulher

a luz que os homens

negaram

no corpo da musa

cibele

o renascimento

do amor almejado.

II

Mas é na hora

da partida

que o amor

mais se sente

da poesia

e do poeta

que marca

a alma

da gente.



Quando a poetisa me contactou telefonicamente e por mail sobre a sua intenção de publicar um livro e implicitamente saber a minha opinião, lembrei-me de Rilke, nas suas cartas a um jovem poeta, e disse-lhe o mesmo, por palavras chãs, que são as minhas:

“Pergunta-me - escreveu Rilke - se deve editar o livro. Pergunta-mo a mim – depois de o ter perguntado a vários. Doravante (visto que me permite aconselhá-la), peço-lhe que renuncie a tudo isso. (…)
Ninguém pode aconselhá-la nem ajudá-la – ninguém! Há só um caminho: entre em si própria e procure se a necessidade tem raízes no mais profundo do seu coração. Confesse-se a fundo: “Morreria se não me fosse permitido escrever?” Isto. Sobretudo: na hora mais silenciosa da noite, faça a si mesmo esta pergunta: - Sou realmente obrigada a escrever?» - Examine-se a fundo até encontrar a mais profunda resposta. Se esta resposta for afirmativa, se puder fazer face a uma tão grave interrogação com um forte e simples «Devo», então construa a sua vida segundo esta necessidade. A sua vida, mesmo na sua hora mais indiferente, mais vazia, deve tornar-se sinal e testemunho de tal impulso».

São Gonçalves é uma talentosa poetisa, dotada de uma escrita límpida e despojada, a quem agradeço a amizade e com quem partilho estas palavras que guardo com secreto desvelo:


0 sonho, Cibele, é uma taça, uma flor ignota, um desejo imenso
que persiste, mesmo se a dor ao colhê-lo o ignore. Cativo, neste lugar,
perco a exacta noção do ser e do não ser, do tudo ou do nada,
( se é que o todo pode estar circunscrito à palavra…)

Procurarás as estrelas, que iluminarão o caminho. Se solitário, a luz é mais intensa.

Despojada de tudo, encontrarás o segredo das palavras:
ternura, amor, ou apenas sede e um sereno gesto a partilhar
na colheita de uma rosa brava.


Eis o retrato, como diria o sr. K. que desenhei de São Gonçalves, seguro de que ela se lhe parece. Foi uma honra e um prazer.


Arlindo Mota
30 Outubro 2010

FERNANDA ESTEVES: 4 Folhas de 1 mesmo Trevo


Fernanda Esteves é uma poetisa de créditos firmados que me acostumei a admirar, pela sensibilidade e maturidade que inquestionavelmente possui. Afoita-se agora por uma senda nova: a narrativa, não sem que deixe de apor a sua marca poética, que lhe é indissociável.

A obra em apreço lê-se de um fôlego – o que desde logo não é pequeno mérito. E leitor menos desprevenido terá a tentação para nele encontrar traços autobiográficos - essa fricção com a realidade, como diria José Barata-Moura é, em maior ou menor grau, próprio da novela ou romance, sobretudo numa primeira obra.
É isso importante? Indagará o leitor. Nem por isso. A ficção vale por si, adere mais ou menos ao real, mas não será nunca por esse traço que será julgada. E não deverá ser “4 folhas de 1 mesmo Trevo” uma excepção.
Partamos então em busca do sentido e da forma assumida pela autora, numa escrita crua, ágil, vigorosa no desenho das suas personagens.

Quatro gerações constituem o pano de fundo por onde a pena de Fernanda Esteves se alimenta: radica na Galiza de inicio o fulcro da acção, na terceira década do século passado e no seu decorrer perpassam os traços que explicam a atracção que Lisboa (e seus arredores) exerceu sobre muitos dos seus filhos na busca de uma vida melhor. Fora assim que, primeiro na venda de água potável, vinda dos arredores como Caneças, quando ela era escassa ainda na capital do reino português, e era preciso ser adquirida como bem precioso em venda ambulante, fresca e em vasilha de barro. Rapidamente a comunidade galega aumentou acolhendo o comércio da restauração e bebidas a sua preferência. Tempos houve, década de 60 e 70 do século passado, que a maioria dos estabelecimentos era sua pertença e um pitoresco falar galaico era vulgar nas cervejarias e casas de pasto da capital, que perdurou até hoje, pese embora a proeminência económica que haviam granjeado se tenha progressivamente esvaído.


Pois é sobre um destes emigrantes e seus descendentes que se centra a acção: de origem humilde e trabalhador encontra nos cafés e restaurantes em Portugal uma oportunidade para ascender na escala social (“subir na vida”, como então se dizia). O romance traça-nos essa luta quotidiana em busca de melhores condições, entre amores e desamores, êxitos e fracassos, bem caracterizados pela autora por entre uma realidade de penúria e atraso de que o país padecia. O sucesso assentava em árduo esforço e estava longe de ser um dado adquirido (mesmo que a sua medida fosse pouco mais do que uma vida desafogada e de trabalho). No caso das mulheres a situação era ainda mais incerta: à miséria acrescia a sua situação de menoridade de estatuto; o caminho da sua emancipação social e psicológica demoraria ainda décadas.

Uma das virtudes que ressaltam ao leitor que sobretudo sou, é a narrativa chã de um quotidiano escasso em referências culturais, incidindo sobretudo nas relações pessoais e familiares, na posição tradicional da mulher, mãe, dona de casa ou amante, assente nos mecanismos de mobilidade de uma pequena burguesia, pobre ou remediada, onde os horizontes se confinavam pouco mais que à sobrevivência na difícil labuta de angariar o pão nosso de cada dia, ou, um pouco mais além, pela abertura de um negócio que abria um pouco mais os horizontes, e onde a religião e a superstição estavam assiduamente presentes.

As pequenas grandezas e misérias que emergem das situações e das personagens centram-se nos emigrantes galegos que demandaram Setúbal. O romance gira em seu torno, nas suas diversas gerações. Ao leitor não lhe oferece dúvida que a autora não o faz por acaso: se porventura a “fricção da realidade” faz algum sentido, então quase poderíamos afirmar que há traços autobiográficos muito bem vincados neste romance, que de uma forma pouco habitual apresenta em cada capítulo um separador (um poema), que longe de provocar um distanciamento dramático à maneira brechtiana se implica na acção fornecendo-nos preciosos dados sobre a geografia física mas também, e sobretudo, dos afectos que impregnam (explícitos ou implícitos) a sua escrita.

Na sua efabulação minuciosa, Fernanda Esteves dá-nos a ver uma realidade que gravita em torno de uma família que parece perseguida por um “fado”, no sentido de destino, que o sentido autobiográfico que o romance transporta e que se acentua ao caminhar para o seu epílogo, parece imbuído de uma carga simbólica de uma herança trágica em que por fim os demónios à solta encontram o seu apaziguamento numa última geração, centrada numa figura feminina que encontra a sua razão de ser e redenção, por mais paradoxal que pareça, aí onde floresce o sonho e sobra a angústia.

A narrativa límpida, gráfica, vertiginosa pressente-se que guarda segredos e desvenda outros que não pertencem à ficção. Há pessoas reais que se ocultam por detrás das personagens, por ali perpassam vidas que se conhecem mais pela memória que pela fantasia. A autora, no fim, parece ganhar uma paz de que parecia necessitada. Ou é o leitor que eu sou que, sugestionado pelo vigor da palavra e a imaginação da escritora, sucumbe na busca do sentido?


in
Prefácio

arlindo pato mota
Setembro 2010

EUFRÁZIO FILIPE: PARA LÁ DO AZUL

PREFÁCIO


Se de algum modo tentássemos surpreender o que de mais significativo existiria na poesia de Eufrázio Filipe, com a qual tomei contacto há mais de vinte anos, coincidente com a publicação do livro “Mar Arável”, é a sua obstinada coerência por uma matriz que se assume, na plenitude da sua subjectividade, na construção de um mundo visto de dentro, mundo singular e inimitável, a que só o sentimento dá acesso. Mas um mundo que, nem por isso, corta as amarras com o mundo exterior. Atente-se como Eufrázio Filipe, fiel aos seus pressupostos poéticos, aborda o 25 de Abril no poema Festa de Belos Vendavais:

“Estávamos num conflito de areias
desterrados no deserto
quando choveu
nas nossas bocas
uma certa água
e os cravos povoaram
as ruas (…)

mas és tu Abril
no mais íntimo dos silêncios
a minha festa de belos vendavais.”

Eufrázio Filipe é um autor com vários livros publicados. A sua poesia constitui, podemos assim afirmá-lo com segurança, um mundo que se ergue assente em firmes esteios simbólicos, que se estriba e mergulha raízes em referenciais que lhe são familiares. A sua linguagem confere-lhe uma unidade, que é o sentido e a forma de que se alimenta a sua experiência estética. Será, em vão, procurar fora do universo da suapoesia o desvendamento do que aí se dá: ela não é transitiva, é preciso que a atenção incida sobre si própria.
Em todo o livro, o autor estabelece um subtil diálogo, mais pressentido que nomeado, entre um “eu” e um “tu” onde se respira uma delicada sensualidade que percorre quase todos os poemas e onde as palavras vão, serenamente, desenhando uma trigonometria imperiosa dos sentidos:
“Os barcos ainda não tinham
abandonado o chão das água
já vergavas o corpo (…)
e deixavas os peixes saltarem
nos teus olhos prateados (…)
mas só quando a desoras
te abres em flor e desnudas
entregas o resto das forças
a um beijo”

(Oculta no Grasnar das Aves)

Ressalta igualmente uma dimensão lírica na sua poesia: dela se desprendem os afectos do autor, num trabalho sobre a língua, com os seus ritmos e sonoridades. Como escreveu Paul Valéry, a poesia é uma “hesitation prolongée entre le son et le sens” (a poesia é uma hesitação prolongada entre o som e o sentido”) querendo realçar o prazer do leitor na procura do segredo das palavras, mistério que o autor guarda, ciosamente, no interior do seu imaginário.
.
Quase diário íntimo, este livro de Eufrázio Filipe está recoberto de imagens cuja familiaridade reenvia à infância e à geografia – precisa herança onde emergem frequentemente vocábulos que localizam o autor, como: “azul, água, mar, rio, barco, vento, brisa, praia, seixos, aves, rota, tremulina”, entre outros – que faz da sua obra uma poética inquestionavelmente adquirida tanto na cultura - pois Eufrázio Filipe deixa antever a leitura de muitos poetas, como Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen, David Mourão -Ferreira - como na aprendizagem do quotidiano:
“Mas tu sabes que não existem
barcos alados
Talvez por isso ainda te veja
Em preces
Sentada nas areias
a levar a boca à foz do rio
até o meu barco
Era mais azul que o céu”

(Mais Azul que o Céu)


É comum afirmar-se que a linguagem poética é polissémica, que nos reenvia a vários sentidos. E esta dimensão semântica está bem presente na poesia do autor que através, da associação de palavras, estilhaça uma esperada previsibilidade, como quando escreve em As Palavras Não Sabem Respirar por Guelras:

“Todas as palavras são parcas
mesmo as que se afogam
por não saberem respirar por guelras

foi assim que te dei um abraço
que não era um abraço
mas uma transfusão de sangue”

Eufrázio Filipe, seguro do seu rumo, acolhe-se frequentemente na ambiguidade desafiando o leitor a desocultar o sentido produzido pelas rupturas semânticas que têm em vista a criação de uma atmosfera poética própria:

“Amanheci
a desenhar
o teu corpo
para desfolhar
uma
rosa

Porque não uma rosa?
Todas as flores
se desfolham
também tu rosa”

(Rosa Folheada)

Sempre estimulando a imaginação do leitor, a sua poesia não abdica dessa qualidade afectiva que a impregna, marcada que está por uma refracção subjectiva que bastas vezes desagua próxima da emoção , como em Vagaroso Instante:

“Logo hoje que era preciso
Rasgar destinos
Ajudar
O grito das marés (…)

Logo hoje
Subi às colinas
E adormeci
Só para te ver
Vagaroso instante.”

Essa subjectividade e amálgama de confluências que caracterizam a arte dos nossos dias, levou Miró a dizer “Eu não estabeleço nenhuma diferença entre pintura e poesia. Acontece-me frequentemente ilustrar as minhas telas com frases poéticas e vice-versa”. Ou Picasso quando, no mesmo sentido, escreve: “No fim de contas, as artes fundem-se numa só. Pode-se escrever uma pintura em palavras como se pode pintar sensações num poema”. Nessa direcção vai Eufrázio Filipe quando escreve (Risco Azul):

“Traço na água
um risco azul

Solto-lhe as velas
do silêncio

Assim rasgo uma pedra
com vida por dentro”

Logo no início do livro, o autor faz uma incursão por um território que não lhe é comum (aliás, é o único poema desse género que integra o livro): a prosa poética. Lê-lo, é constatar que a liberdade de que goza o poeta lhe permite, com naturalidade, transgredir a norma da prosa, que é a da comunicação fiável e segura: a forma como Eufrázio Filipe utiliza a sintaxe é, por si mesma, portadora de “poeticidade”:

“(…)
E agora? Que farás para a água te lavar os pés? Que farás para o mar não te abandonar? Que farás para o conquistares? Que farás para as uvas amadurecerem e as andorinhas regressarem?
Que farás de ti, pelas outras estrelas?”

(Que Farás de Ti?)

Retenho-me, nesta caminhada que já vai longa, neste último verso, para evidenciar, que apesar de Eufrázio Filipe se sentir à vontade na linguagem que os recurso poéticos contemporâneos lhe facultam, a sua poesia não padece da gratuitidade do formalismo, ela, na sua subjectividade, continua sibilinamente a reenviar ao mundo e a exigir do leitor olhos bem atentos para uma compreensão cabal do seu imaginário poético, que é rasgadamente fecundo e comprometido.

arlindo pato mota
fevereiro 2010

sábado, 21 de agosto de 2010

ana coelho e josé Antunes: entre nuances, sonhos e cumplicidades



Ana Coelho e José Antunes, são dois autores com uma envolvente e genuína pulsão pela poesia. Na escrita e nos gestos, que de gestos também se constrói a poesia. Buscam com paixão e rigor o segredo das palavras, que renovam sem cessar. Parcimoniosos na utilização de metáforas, optam claramente por não assentar na metrificação clássica, salvo uma ou outra incursão, num ou noutro poema.

Conhecedores da herança lírica portuguesa, não se confinam ao formalismo e abordam a linguagem com criatividade, onde os temas do amor estão abundantemente presentes, mas também o psicológico e o social (sem cair no realismo) não são esquecidos e isso revela-se ao longo de todo do livro. A sua poesia, seguindo a moderna estética, constitui a verdade de um mundo sentido por uma subjectividade; o que ela diz é um mundo para o homem, um mundo visto de dentro, mundo singular e inimitável a que só o sentimento dará acesso.


Falei até agora dos autores como se fossem apenas um: eles de alguma forma a isso nos conduzem, porque se apresentam juntos, face a se face, porque o livro constitui para eles a sagração dessa comunhão. Mas, em boa verdade, se muitos traços os identificam, outros os distinguem. Ana Coelho navega mais suavemente nas palavras, é, de algum modo, o lado assumidamente feminino do livro; José Antunes, de escrita comedida, apresenta mais arestas na leitura e na interpretação da sua simbologia. Comum aos dois, a contenção vocabular e arredia da adjectivação excessiva, que torna a sua poesia rigorosa e límpida, dotada de uma invejável coerência interna.

O livro, por sua opção, apresenta-se dividido em cinco capítulos: “Momentos”; “Trincheiras de Sonho”; “Distâncias”; “Lampejos”; “Cumplicidades”.
Momentos: aí se inserem poemas onde, como numa viagem, os autores se interrogam (“Em busca de mim” JA; “Inquietações” AC) nos seus fragmentos, sobre o sentido da vida e o caminho que seguiu: paradigmático é o poema “Não me ergo, levanto-me”

Eu não me ergo, levanto-me
quem se ergue sempre caiu
e eu puxo por mim(…)

Enquanto Ana Coelho diz em “A razão dança e chora”:

“O destino é um improviso
Chega tantas vezes sem aviso
Deitado em encruzilhadas
Dos becos pouco iluminados”

Nesta viagem ao interior da memória e das lembranças que a povoam, José Antunes denota uma marca mais vincada, sulcos que deixaram vestígios inapagáveis “Há que ter coragem/para morrer de pé,/- diz a fogueira mãe/às labaredas guerreiras”, enquanto Ana Coelho descreve “Sem rosa dos ventos/nem norte, nem sul/profunda veemência quieta” para acrescentar mais à frente: “No avesso de mim derrotei o medo/No inverso sentido aflorei as emoções” (em Pulsar constante)



As emoções estão presentes em cada verso nessa demanda interior da memória, filtrada, sem desocultar na totalidade a sua essência, mas que se apresenta muitas vezes reflexo de vivências sofridas: “vou amando a vida que magoa/ com as dores que a vida dá!” (JA, Penitência) mesmo quando “Há uma alma que dói (…)/ Nas horas sombrias do dia/ clamando palavras cansadas,/ deixando pegadas de ardor/ nos lábios de uma vida inteira” (JA, Há uma alma que dói) ou na voz da Ana Coelho “rostos humildes/desgastados pelo sol/ nos ombros a coragem,/o fardo que alimenta a esperança.” (Rastilho de mil sonhos)

Mas o sonho – persistente – encontra sempre o seu lugar, como Ana Coelho poeticamente simboliza no seu “Som da luz”:
“Em cada palavra que invento
há um sonho
nele rabisco a essência
do meu pensamento…”

É nesta vida, que vai deixando as suas marcas, que reconstroem a esperança: “Próximo da mágoa/ há um pântano de nenúfares/ onde as ninfas do destino/ se banham e amam” (JA, Próximo da mágoa) enquanto Ana Coelho afirma “No avesso de mim derrotei o medo/ No inverso sentido aflorei as emoções/ Pulsar constante da vida…o destino” (Pulsar constante).

Trincheiras dos Sonhos: Esta segunda jornada é mais explícita na sua referência à realidade social, como desde logo os autores tornam claro com o poema que serve de intróito a este capítulo e também em Desertificação (JA), um dos seus poemas mais marcantes, que evoca o abandono dos campos:
“Não há homens nos campos
e os desertos ardem
na própria secura dos ossos.
As terras estão lavradas a sangue
por sulcos movediços
em que os animais se perdem
do tempo.”
Ou, neste outro, à guerra, reminiscência nitidamente presente na memória do autor, descrita com um vigor contido, como se caracteriza de resto toda a sua poesia:
“Por breves momentos
Os rostos calaram-se nas trincheiras
Onde fértil a guerra dormia fria.(…)
Súbito, um clarão farejou os céus
E o bailado recomeçou na sua forma banal”
(JA, Guerra)

Outro tema abordado a duas vozes, é o da “prostituição”, como canta José Antunes “são mulheres, outras meninas,/ e todas são ninguém” (Meretrizes) e que Ana Coelho descreve assim: “A alma aprisiona sentimentos/ golpes carnais/ onde o pecado é o pão/ o pão amassado/ na mais íntima dureza/ da vida sem destino.” (Vida sem destino)

Mas a voz poética vai-se tornando mais intimista, reflectindo sobre o próprio silêncio “Andamos todos calados/ a urdir os gritos sós/que a língua esconde/ da solidão vizinha, / seja qual for a voz que nos chame” (JA, Silêncio) ou a essência da própria existência: “Interior fertilidade convém incorporar/ Na dimensão que o olhar atinge/ A efemeridade ou a eternidade/ É débil o albergue da exuberância” (AC, Insignificante), exibida na inquietação do tempo que inexoravelmente vai passando: “Talhados de inquietude/ nós somos o dardo/ que os braços lançam/ ao declínio da idade” (JA, Anagrama das existências).


Distâncias: Neste terceiro capítulo, o tempo emerge nos seus diferentes cambiantes e facetas, como neste poema de José Antunes, de clara inspiração popular:
“Porque a hora nos devassa
e cativa arrebata
traz na sevícia palavra
a sua simples falácia…

Porque o desejo é um engano
Que nos trai a cada passo,
Cativa belo e enlaça,
Depois dá-nos um brejo
Vai e volta, volta e passa”
(JA, Porque assim é)

E o tema amor, sempre recorrente na poesia dos autores, aflora aqui como “um musgo doce/ com nervos de liberdade” (JA, A ausência) ou na espera serena “Anseio o teu sorriso/ espaço nostálgico/nos gritos enamorados” (AC, A tua ausência) ou na paixão, como escreve mais adiante: “Como escrever o amor/ na luz dos meus poemas/ se os corações saltam enamorados/ de tanta paixão” (Ânsias de viver).

E, essa cumplicidade dos dois poetas no campo afectivo, torna-se mais evidente no poema Junto ao Mar, de José Antunes: “Se me vires junto ao mar/ sentado num olhar que se adensa e foge/ não temas a queda (…) / Mas se um dia o mar me trair/ pelo perpetuar da memória, / vem à praia molhar os lábios/ sentirás meus beijos de sal” ou em Flores de amor de Ana Coelho “Traz hoje/ as flores que dão vida/ ao meu coração, / lírios brancos…orquídeas amarelas/…rosas vermelhas (…) Traz agora/ estou aqui”.

Em Lampejos (quarto capítulo) emerge a íntima comunhão de afectos entre os dois poetas como está bem vincada neste poema:
“Subtrai-me
que eu adiciono-te
com beijos fecundos
e alma boa,
com gesto meigo
de quem não te esquece.

Divide-me
que eu transbordo-te
entre carinhos ternos afagos(…)
…saberás que eu e tu
não somos dois
mas um único olhar futuro!”
(JA, Matemática das emoções)

Tudo aqui se organiza em torno da reciprocidade dos afectos em que, como escreve Ana Coelho: “A minha alma estremece/ na imensidão do amor/ que escorre em seiva suave,/ de quem ama e é amado…” (Infinito amor) a que José Antunes expressivamente dá corpo no poema A verdade é que te quero, amo e mimo (“A verdade é que desespero/ se a memória não traz notícias tuas/…talvez chore, talvez grite/ ou por ti espere nos passos dos olhos”.

Na esteira das cantigas de amigo medievais, mas onde a mulher ocupa agora um espaço de igual dignidade, os dois autores entoam loas à/ao bem amada(o), bordando palavras doces num estado de alma de permanente enamoramento “O manto do teu destino/ cobre-me/ bordado de cetim/ no rio que vejo” (AC, O teu manto)

Cumplicidades (5.ºCapítulo): A viagem aproxima-se do seu termo, tal como os poetas a idealizaram para este livro a dois, depois dos “lampejos”, abrem-nos as portas da sua intimidade, num conjunto de sóbrias mas apaixonadas composições, a que deram o nome de “cumplicidades”:
“ (…) Nesta teia de olhares mudos
trocamos promessas
de amor eterno,
sem medo de amar.”
(Ana Coelho, Olhares)

Ou em Beijos teus, de José Antunes
“Lavados de abraços, acariciados,
os lábios guardam confidências sensuais
enquanto os corpos florescem noivados
na esperança de amores reais.” (…)

A sensualidade é a nota dominante dos poemas que integram todo o capítulo “Estou nu./ Deliberadamente à espera/ que na carne madura/ a tua paixão singre a noite/ e a lucidez se indefira/ no cetim do amor” (JA, Estou nu) ou na Voragem dos amantes: “Estavas nu, /Deliberadamente à espera/ Na voragem dos amantes/Ânsias carnais/ Na volúpia do desejo” (Ana Coelho)

Chegada ao fim da viagem, os seus autores deverão sentir-se, justamente, apaziguados: partindo da matéria que é palavra para a poesia, revelando uma maturidade assinalável, oferecem-nos uma escrita cristalina, despojada do acessório inútil, mas orgulhosa do seu rumo, como diz Ana Coelho:”Despi o supérfluo revesti o íntimo/ Na seda natural em branca cor/ Que envolve o coração em sossego” (Pulsar constante).

Janeiro de 2010
arlindo mota

UM LIVRO, UM AUTOR

A SEDA DAS PALAVRAS, de Arlindo Mota

Arlindo Mota é uma personalidade setubalense que dispensa apresentações. A sua intervenção cívica e cultural, tocando múltiplas áreas, tem sido das mais actuantes nas últimas décadas. Todos conhecemos a sua acção enquanto professor, homem de pensamento, cidadão empenhado. Tem, desde sempre, dedicado à escrita boa parte do seu tempo, investindo em áreas tão distintas como a filosofia, o municipalismo, o património. Porém, a mais íntima, a mais secreta, a mais constante, é a escrita poética, sendo de destacar Canto Viageiro (1981), Incertos Dias (1986), Marca de Água (1996) e A Seda das Palavras (2004), título que retoma em parte os anteriores, a que foi acrescentado um lote de poesias inéditas, «Poemas para Cibele».

De seda se vestem as palavras deste último título, depois de ensaiado o «canto viageiro» e ultrapassados «incertos dias» de um quotidiano a que o eu poético soube apor a sua «marca de água», sob o olhar atento, «húmido» e «brilhante» de Cibele. Palavras atravessadas por um toque de delicadeza, sensibilidade, sentido lírico. Palavras de amor, desejo, partilha, ternura, inquietação, busca, num navegar poético por rotas ora originais ora revisitadas, entre um presente calmo, de aceitação de um destino inevitável, e um passado pontuado por afectos vários, delineando o «percurso percorrido» de uma viagem incessante. Viagem ou viagens, já que ao longo do livro a viagem é tema recorrente, assumindo diferentes planos e simbologias.

Palavras de seda em festim de polissemias, vestindo os sentidos: a visão, o toque, o olfacto. Através delas desenha-se um retrato na sua dimensão de corporalidade, retrato de contornos finos, sobressaindo rosto, olhos, lábios, mãos, veículos de expressões de afecto e desejo. Os sentidos balizam grandemente esta poética, desaguando em momentos de ternura e sensualidade, esta, por vezes, mais pressentida do que dita. O eu poético vive permanentemente do contraponto do tu, nomeado ou não, latente, vivo, omnipresente. Um tu maioritariamente singular, objecto da memória, da paixão, do desejo e das obsessões do eu.

O olhar do sujeito poético espraia-se do corpo ao espaço em seu redor, espaço quase sempre litoral que se funde, amiúde, na memória de vivências amorosas. São abundantes os elementos naturalistas, surgindo em jogos antitéticos ou complementares, plenos de simbologias, como a água, o fogo, o sal, a luz, a noite, o dia, o luar, o mar, o rio, o calor, o vento, o tempo, o sol, a lua, a terra, a ilha, a raiz, o arco-íris, a areia, onde se escrevem «palavras que o acaso não esquece». Aqui e ali respira-se o perfume da giesta, da malvasia, de uma flor; sente-se o sabor a cereja.

Alguns destes motivos surgem como obsessões lexicais do poeta, repetindo-se ao longo do livro, vestindo diversos sentimentos e servindo reflexões várias, dando a ver um sujeito inteiro, vivendo, entre estações, o tempo de ser criança, o tempo de amar, o tempo de sonhar, o tempo de todas as mudanças, o tempo de desiludir-se, o tempo de redescobrir sentidos e afectos, tempo que é «escanção dos sonhos» e dá à vida, à medida que vai sendo vivida, diferentes perspectivas.

A persona poética vai-se questionando, desenhando percursos, manifestando inquietações. Reflecte sobre poesia, afirmando que «a geometria do poema é hexagonal», constituindo-se como objecto fechado nos limites da sua especificidade, levando-nos a reparar em alguns aspectos formais, com destaque para a dimensão estrófica, balizada por grande contenção. Os poemas são geralmente curtos, lembrando alguns deles a concisão dos haikai. Apenas a última parte do livro, «Poemas para Cibele», contraria esta constatação, já que os poemas que a constituem são um pouco mais extensos, sem, contudo, chegarem a ser longos.

O tom coloquial de alguma desta poesia coexiste com o gosto pelo uso de vocábulos menos habituais. Surgem mesmo expressões que actualmente só têm uso literário, como «ledo» e «coita de amor». Essas escolhas ao nível da linguagem fazem-nos ouvir outras vozes, presentes ainda em sonoridades, motivos, ideias, temáticas, mitologias, sentidas como raiz mais ou menos consentida, mais ou menos assumida.
É em «Poemas para Cibele» que o reflectir sobre os limites do ser humano é mais sentido. Aí, a par da redescoberta dos sentidos, tudo converge para a aceitação serena da grande caminhada que é a vida. O confronto entre o amor e a finitude, um dos tópicos universais da poesia, confere a este livro uma certa dimensão de busca da intemporalidade poética. Talvez por isso haja quem vislumbre uma certa tonalidade clássica em alguns destes poemas.

No final deste canto viageiro de uma voz poética que tem atravessado moradas diversas, é o amor que nos surge como ninho. E o poema diz-nos que o sujeito poético continua a olhar os sentimentos como «húmus», como «campos de semeadora», acredita neles, e, apesar de conhecer os seus limites, permanece aberto ao sonho, à viagem, ao amor, à efemeridade, enfim, à vida.

Fátima Ribeiro de Medeiros
IELT, FCSH - UNL