sábado, 6 de novembro de 2010

FERNANDA ESTEVES: 4 Folhas de 1 mesmo Trevo


Fernanda Esteves é uma poetisa de créditos firmados que me acostumei a admirar, pela sensibilidade e maturidade que inquestionavelmente possui. Afoita-se agora por uma senda nova: a narrativa, não sem que deixe de apor a sua marca poética, que lhe é indissociável.

A obra em apreço lê-se de um fôlego – o que desde logo não é pequeno mérito. E leitor menos desprevenido terá a tentação para nele encontrar traços autobiográficos - essa fricção com a realidade, como diria José Barata-Moura é, em maior ou menor grau, próprio da novela ou romance, sobretudo numa primeira obra.
É isso importante? Indagará o leitor. Nem por isso. A ficção vale por si, adere mais ou menos ao real, mas não será nunca por esse traço que será julgada. E não deverá ser “4 folhas de 1 mesmo Trevo” uma excepção.
Partamos então em busca do sentido e da forma assumida pela autora, numa escrita crua, ágil, vigorosa no desenho das suas personagens.

Quatro gerações constituem o pano de fundo por onde a pena de Fernanda Esteves se alimenta: radica na Galiza de inicio o fulcro da acção, na terceira década do século passado e no seu decorrer perpassam os traços que explicam a atracção que Lisboa (e seus arredores) exerceu sobre muitos dos seus filhos na busca de uma vida melhor. Fora assim que, primeiro na venda de água potável, vinda dos arredores como Caneças, quando ela era escassa ainda na capital do reino português, e era preciso ser adquirida como bem precioso em venda ambulante, fresca e em vasilha de barro. Rapidamente a comunidade galega aumentou acolhendo o comércio da restauração e bebidas a sua preferência. Tempos houve, década de 60 e 70 do século passado, que a maioria dos estabelecimentos era sua pertença e um pitoresco falar galaico era vulgar nas cervejarias e casas de pasto da capital, que perdurou até hoje, pese embora a proeminência económica que haviam granjeado se tenha progressivamente esvaído.


Pois é sobre um destes emigrantes e seus descendentes que se centra a acção: de origem humilde e trabalhador encontra nos cafés e restaurantes em Portugal uma oportunidade para ascender na escala social (“subir na vida”, como então se dizia). O romance traça-nos essa luta quotidiana em busca de melhores condições, entre amores e desamores, êxitos e fracassos, bem caracterizados pela autora por entre uma realidade de penúria e atraso de que o país padecia. O sucesso assentava em árduo esforço e estava longe de ser um dado adquirido (mesmo que a sua medida fosse pouco mais do que uma vida desafogada e de trabalho). No caso das mulheres a situação era ainda mais incerta: à miséria acrescia a sua situação de menoridade de estatuto; o caminho da sua emancipação social e psicológica demoraria ainda décadas.

Uma das virtudes que ressaltam ao leitor que sobretudo sou, é a narrativa chã de um quotidiano escasso em referências culturais, incidindo sobretudo nas relações pessoais e familiares, na posição tradicional da mulher, mãe, dona de casa ou amante, assente nos mecanismos de mobilidade de uma pequena burguesia, pobre ou remediada, onde os horizontes se confinavam pouco mais que à sobrevivência na difícil labuta de angariar o pão nosso de cada dia, ou, um pouco mais além, pela abertura de um negócio que abria um pouco mais os horizontes, e onde a religião e a superstição estavam assiduamente presentes.

As pequenas grandezas e misérias que emergem das situações e das personagens centram-se nos emigrantes galegos que demandaram Setúbal. O romance gira em seu torno, nas suas diversas gerações. Ao leitor não lhe oferece dúvida que a autora não o faz por acaso: se porventura a “fricção da realidade” faz algum sentido, então quase poderíamos afirmar que há traços autobiográficos muito bem vincados neste romance, que de uma forma pouco habitual apresenta em cada capítulo um separador (um poema), que longe de provocar um distanciamento dramático à maneira brechtiana se implica na acção fornecendo-nos preciosos dados sobre a geografia física mas também, e sobretudo, dos afectos que impregnam (explícitos ou implícitos) a sua escrita.

Na sua efabulação minuciosa, Fernanda Esteves dá-nos a ver uma realidade que gravita em torno de uma família que parece perseguida por um “fado”, no sentido de destino, que o sentido autobiográfico que o romance transporta e que se acentua ao caminhar para o seu epílogo, parece imbuído de uma carga simbólica de uma herança trágica em que por fim os demónios à solta encontram o seu apaziguamento numa última geração, centrada numa figura feminina que encontra a sua razão de ser e redenção, por mais paradoxal que pareça, aí onde floresce o sonho e sobra a angústia.

A narrativa límpida, gráfica, vertiginosa pressente-se que guarda segredos e desvenda outros que não pertencem à ficção. Há pessoas reais que se ocultam por detrás das personagens, por ali perpassam vidas que se conhecem mais pela memória que pela fantasia. A autora, no fim, parece ganhar uma paz de que parecia necessitada. Ou é o leitor que eu sou que, sugestionado pelo vigor da palavra e a imaginação da escritora, sucumbe na busca do sentido?


in
Prefácio

arlindo pato mota
Setembro 2010

1 comentário:

  1. Arlindo,
    Foi um dia muito especial para mim, tranquilo também por estar na sua companhia e contar com o seu apoio incondicional.
    Muito obrigada por tudo e muito sucesso.
    Nanda

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