sábado, 21 de agosto de 2010
UM LIVRO, UM AUTOR
A SEDA DAS PALAVRAS, de Arlindo Mota
Arlindo Mota é uma personalidade setubalense que dispensa apresentações. A sua intervenção cívica e cultural, tocando múltiplas áreas, tem sido das mais actuantes nas últimas décadas. Todos conhecemos a sua acção enquanto professor, homem de pensamento, cidadão empenhado. Tem, desde sempre, dedicado à escrita boa parte do seu tempo, investindo em áreas tão distintas como a filosofia, o municipalismo, o património. Porém, a mais íntima, a mais secreta, a mais constante, é a escrita poética, sendo de destacar Canto Viageiro (1981), Incertos Dias (1986), Marca de Água (1996) e A Seda das Palavras (2004), título que retoma em parte os anteriores, a que foi acrescentado um lote de poesias inéditas, «Poemas para Cibele».
De seda se vestem as palavras deste último título, depois de ensaiado o «canto viageiro» e ultrapassados «incertos dias» de um quotidiano a que o eu poético soube apor a sua «marca de água», sob o olhar atento, «húmido» e «brilhante» de Cibele. Palavras atravessadas por um toque de delicadeza, sensibilidade, sentido lírico. Palavras de amor, desejo, partilha, ternura, inquietação, busca, num navegar poético por rotas ora originais ora revisitadas, entre um presente calmo, de aceitação de um destino inevitável, e um passado pontuado por afectos vários, delineando o «percurso percorrido» de uma viagem incessante. Viagem ou viagens, já que ao longo do livro a viagem é tema recorrente, assumindo diferentes planos e simbologias.
Palavras de seda em festim de polissemias, vestindo os sentidos: a visão, o toque, o olfacto. Através delas desenha-se um retrato na sua dimensão de corporalidade, retrato de contornos finos, sobressaindo rosto, olhos, lábios, mãos, veículos de expressões de afecto e desejo. Os sentidos balizam grandemente esta poética, desaguando em momentos de ternura e sensualidade, esta, por vezes, mais pressentida do que dita. O eu poético vive permanentemente do contraponto do tu, nomeado ou não, latente, vivo, omnipresente. Um tu maioritariamente singular, objecto da memória, da paixão, do desejo e das obsessões do eu.
O olhar do sujeito poético espraia-se do corpo ao espaço em seu redor, espaço quase sempre litoral que se funde, amiúde, na memória de vivências amorosas. São abundantes os elementos naturalistas, surgindo em jogos antitéticos ou complementares, plenos de simbologias, como a água, o fogo, o sal, a luz, a noite, o dia, o luar, o mar, o rio, o calor, o vento, o tempo, o sol, a lua, a terra, a ilha, a raiz, o arco-íris, a areia, onde se escrevem «palavras que o acaso não esquece». Aqui e ali respira-se o perfume da giesta, da malvasia, de uma flor; sente-se o sabor a cereja.
Alguns destes motivos surgem como obsessões lexicais do poeta, repetindo-se ao longo do livro, vestindo diversos sentimentos e servindo reflexões várias, dando a ver um sujeito inteiro, vivendo, entre estações, o tempo de ser criança, o tempo de amar, o tempo de sonhar, o tempo de todas as mudanças, o tempo de desiludir-se, o tempo de redescobrir sentidos e afectos, tempo que é «escanção dos sonhos» e dá à vida, à medida que vai sendo vivida, diferentes perspectivas.
A persona poética vai-se questionando, desenhando percursos, manifestando inquietações. Reflecte sobre poesia, afirmando que «a geometria do poema é hexagonal», constituindo-se como objecto fechado nos limites da sua especificidade, levando-nos a reparar em alguns aspectos formais, com destaque para a dimensão estrófica, balizada por grande contenção. Os poemas são geralmente curtos, lembrando alguns deles a concisão dos haikai. Apenas a última parte do livro, «Poemas para Cibele», contraria esta constatação, já que os poemas que a constituem são um pouco mais extensos, sem, contudo, chegarem a ser longos.
O tom coloquial de alguma desta poesia coexiste com o gosto pelo uso de vocábulos menos habituais. Surgem mesmo expressões que actualmente só têm uso literário, como «ledo» e «coita de amor». Essas escolhas ao nível da linguagem fazem-nos ouvir outras vozes, presentes ainda em sonoridades, motivos, ideias, temáticas, mitologias, sentidas como raiz mais ou menos consentida, mais ou menos assumida.
É em «Poemas para Cibele» que o reflectir sobre os limites do ser humano é mais sentido. Aí, a par da redescoberta dos sentidos, tudo converge para a aceitação serena da grande caminhada que é a vida. O confronto entre o amor e a finitude, um dos tópicos universais da poesia, confere a este livro uma certa dimensão de busca da intemporalidade poética. Talvez por isso haja quem vislumbre uma certa tonalidade clássica em alguns destes poemas.
No final deste canto viageiro de uma voz poética que tem atravessado moradas diversas, é o amor que nos surge como ninho. E o poema diz-nos que o sujeito poético continua a olhar os sentimentos como «húmus», como «campos de semeadora», acredita neles, e, apesar de conhecer os seus limites, permanece aberto ao sonho, à viagem, ao amor, à efemeridade, enfim, à vida.
Fátima Ribeiro de Medeiros
IELT, FCSH - UNL
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