sábado, 21 de agosto de 2010

ana coelho e josé Antunes: entre nuances, sonhos e cumplicidades



Ana Coelho e José Antunes, são dois autores com uma envolvente e genuína pulsão pela poesia. Na escrita e nos gestos, que de gestos também se constrói a poesia. Buscam com paixão e rigor o segredo das palavras, que renovam sem cessar. Parcimoniosos na utilização de metáforas, optam claramente por não assentar na metrificação clássica, salvo uma ou outra incursão, num ou noutro poema.

Conhecedores da herança lírica portuguesa, não se confinam ao formalismo e abordam a linguagem com criatividade, onde os temas do amor estão abundantemente presentes, mas também o psicológico e o social (sem cair no realismo) não são esquecidos e isso revela-se ao longo de todo do livro. A sua poesia, seguindo a moderna estética, constitui a verdade de um mundo sentido por uma subjectividade; o que ela diz é um mundo para o homem, um mundo visto de dentro, mundo singular e inimitável a que só o sentimento dará acesso.


Falei até agora dos autores como se fossem apenas um: eles de alguma forma a isso nos conduzem, porque se apresentam juntos, face a se face, porque o livro constitui para eles a sagração dessa comunhão. Mas, em boa verdade, se muitos traços os identificam, outros os distinguem. Ana Coelho navega mais suavemente nas palavras, é, de algum modo, o lado assumidamente feminino do livro; José Antunes, de escrita comedida, apresenta mais arestas na leitura e na interpretação da sua simbologia. Comum aos dois, a contenção vocabular e arredia da adjectivação excessiva, que torna a sua poesia rigorosa e límpida, dotada de uma invejável coerência interna.

O livro, por sua opção, apresenta-se dividido em cinco capítulos: “Momentos”; “Trincheiras de Sonho”; “Distâncias”; “Lampejos”; “Cumplicidades”.
Momentos: aí se inserem poemas onde, como numa viagem, os autores se interrogam (“Em busca de mim” JA; “Inquietações” AC) nos seus fragmentos, sobre o sentido da vida e o caminho que seguiu: paradigmático é o poema “Não me ergo, levanto-me”

Eu não me ergo, levanto-me
quem se ergue sempre caiu
e eu puxo por mim(…)

Enquanto Ana Coelho diz em “A razão dança e chora”:

“O destino é um improviso
Chega tantas vezes sem aviso
Deitado em encruzilhadas
Dos becos pouco iluminados”

Nesta viagem ao interior da memória e das lembranças que a povoam, José Antunes denota uma marca mais vincada, sulcos que deixaram vestígios inapagáveis “Há que ter coragem/para morrer de pé,/- diz a fogueira mãe/às labaredas guerreiras”, enquanto Ana Coelho descreve “Sem rosa dos ventos/nem norte, nem sul/profunda veemência quieta” para acrescentar mais à frente: “No avesso de mim derrotei o medo/No inverso sentido aflorei as emoções” (em Pulsar constante)



As emoções estão presentes em cada verso nessa demanda interior da memória, filtrada, sem desocultar na totalidade a sua essência, mas que se apresenta muitas vezes reflexo de vivências sofridas: “vou amando a vida que magoa/ com as dores que a vida dá!” (JA, Penitência) mesmo quando “Há uma alma que dói (…)/ Nas horas sombrias do dia/ clamando palavras cansadas,/ deixando pegadas de ardor/ nos lábios de uma vida inteira” (JA, Há uma alma que dói) ou na voz da Ana Coelho “rostos humildes/desgastados pelo sol/ nos ombros a coragem,/o fardo que alimenta a esperança.” (Rastilho de mil sonhos)

Mas o sonho – persistente – encontra sempre o seu lugar, como Ana Coelho poeticamente simboliza no seu “Som da luz”:
“Em cada palavra que invento
há um sonho
nele rabisco a essência
do meu pensamento…”

É nesta vida, que vai deixando as suas marcas, que reconstroem a esperança: “Próximo da mágoa/ há um pântano de nenúfares/ onde as ninfas do destino/ se banham e amam” (JA, Próximo da mágoa) enquanto Ana Coelho afirma “No avesso de mim derrotei o medo/ No inverso sentido aflorei as emoções/ Pulsar constante da vida…o destino” (Pulsar constante).

Trincheiras dos Sonhos: Esta segunda jornada é mais explícita na sua referência à realidade social, como desde logo os autores tornam claro com o poema que serve de intróito a este capítulo e também em Desertificação (JA), um dos seus poemas mais marcantes, que evoca o abandono dos campos:
“Não há homens nos campos
e os desertos ardem
na própria secura dos ossos.
As terras estão lavradas a sangue
por sulcos movediços
em que os animais se perdem
do tempo.”
Ou, neste outro, à guerra, reminiscência nitidamente presente na memória do autor, descrita com um vigor contido, como se caracteriza de resto toda a sua poesia:
“Por breves momentos
Os rostos calaram-se nas trincheiras
Onde fértil a guerra dormia fria.(…)
Súbito, um clarão farejou os céus
E o bailado recomeçou na sua forma banal”
(JA, Guerra)

Outro tema abordado a duas vozes, é o da “prostituição”, como canta José Antunes “são mulheres, outras meninas,/ e todas são ninguém” (Meretrizes) e que Ana Coelho descreve assim: “A alma aprisiona sentimentos/ golpes carnais/ onde o pecado é o pão/ o pão amassado/ na mais íntima dureza/ da vida sem destino.” (Vida sem destino)

Mas a voz poética vai-se tornando mais intimista, reflectindo sobre o próprio silêncio “Andamos todos calados/ a urdir os gritos sós/que a língua esconde/ da solidão vizinha, / seja qual for a voz que nos chame” (JA, Silêncio) ou a essência da própria existência: “Interior fertilidade convém incorporar/ Na dimensão que o olhar atinge/ A efemeridade ou a eternidade/ É débil o albergue da exuberância” (AC, Insignificante), exibida na inquietação do tempo que inexoravelmente vai passando: “Talhados de inquietude/ nós somos o dardo/ que os braços lançam/ ao declínio da idade” (JA, Anagrama das existências).


Distâncias: Neste terceiro capítulo, o tempo emerge nos seus diferentes cambiantes e facetas, como neste poema de José Antunes, de clara inspiração popular:
“Porque a hora nos devassa
e cativa arrebata
traz na sevícia palavra
a sua simples falácia…

Porque o desejo é um engano
Que nos trai a cada passo,
Cativa belo e enlaça,
Depois dá-nos um brejo
Vai e volta, volta e passa”
(JA, Porque assim é)

E o tema amor, sempre recorrente na poesia dos autores, aflora aqui como “um musgo doce/ com nervos de liberdade” (JA, A ausência) ou na espera serena “Anseio o teu sorriso/ espaço nostálgico/nos gritos enamorados” (AC, A tua ausência) ou na paixão, como escreve mais adiante: “Como escrever o amor/ na luz dos meus poemas/ se os corações saltam enamorados/ de tanta paixão” (Ânsias de viver).

E, essa cumplicidade dos dois poetas no campo afectivo, torna-se mais evidente no poema Junto ao Mar, de José Antunes: “Se me vires junto ao mar/ sentado num olhar que se adensa e foge/ não temas a queda (…) / Mas se um dia o mar me trair/ pelo perpetuar da memória, / vem à praia molhar os lábios/ sentirás meus beijos de sal” ou em Flores de amor de Ana Coelho “Traz hoje/ as flores que dão vida/ ao meu coração, / lírios brancos…orquídeas amarelas/…rosas vermelhas (…) Traz agora/ estou aqui”.

Em Lampejos (quarto capítulo) emerge a íntima comunhão de afectos entre os dois poetas como está bem vincada neste poema:
“Subtrai-me
que eu adiciono-te
com beijos fecundos
e alma boa,
com gesto meigo
de quem não te esquece.

Divide-me
que eu transbordo-te
entre carinhos ternos afagos(…)
…saberás que eu e tu
não somos dois
mas um único olhar futuro!”
(JA, Matemática das emoções)

Tudo aqui se organiza em torno da reciprocidade dos afectos em que, como escreve Ana Coelho: “A minha alma estremece/ na imensidão do amor/ que escorre em seiva suave,/ de quem ama e é amado…” (Infinito amor) a que José Antunes expressivamente dá corpo no poema A verdade é que te quero, amo e mimo (“A verdade é que desespero/ se a memória não traz notícias tuas/…talvez chore, talvez grite/ ou por ti espere nos passos dos olhos”.

Na esteira das cantigas de amigo medievais, mas onde a mulher ocupa agora um espaço de igual dignidade, os dois autores entoam loas à/ao bem amada(o), bordando palavras doces num estado de alma de permanente enamoramento “O manto do teu destino/ cobre-me/ bordado de cetim/ no rio que vejo” (AC, O teu manto)

Cumplicidades (5.ºCapítulo): A viagem aproxima-se do seu termo, tal como os poetas a idealizaram para este livro a dois, depois dos “lampejos”, abrem-nos as portas da sua intimidade, num conjunto de sóbrias mas apaixonadas composições, a que deram o nome de “cumplicidades”:
“ (…) Nesta teia de olhares mudos
trocamos promessas
de amor eterno,
sem medo de amar.”
(Ana Coelho, Olhares)

Ou em Beijos teus, de José Antunes
“Lavados de abraços, acariciados,
os lábios guardam confidências sensuais
enquanto os corpos florescem noivados
na esperança de amores reais.” (…)

A sensualidade é a nota dominante dos poemas que integram todo o capítulo “Estou nu./ Deliberadamente à espera/ que na carne madura/ a tua paixão singre a noite/ e a lucidez se indefira/ no cetim do amor” (JA, Estou nu) ou na Voragem dos amantes: “Estavas nu, /Deliberadamente à espera/ Na voragem dos amantes/Ânsias carnais/ Na volúpia do desejo” (Ana Coelho)

Chegada ao fim da viagem, os seus autores deverão sentir-se, justamente, apaziguados: partindo da matéria que é palavra para a poesia, revelando uma maturidade assinalável, oferecem-nos uma escrita cristalina, despojada do acessório inútil, mas orgulhosa do seu rumo, como diz Ana Coelho:”Despi o supérfluo revesti o íntimo/ Na seda natural em branca cor/ Que envolve o coração em sossego” (Pulsar constante).

Janeiro de 2010
arlindo mota

UM LIVRO, UM AUTOR

A SEDA DAS PALAVRAS, de Arlindo Mota

Arlindo Mota é uma personalidade setubalense que dispensa apresentações. A sua intervenção cívica e cultural, tocando múltiplas áreas, tem sido das mais actuantes nas últimas décadas. Todos conhecemos a sua acção enquanto professor, homem de pensamento, cidadão empenhado. Tem, desde sempre, dedicado à escrita boa parte do seu tempo, investindo em áreas tão distintas como a filosofia, o municipalismo, o património. Porém, a mais íntima, a mais secreta, a mais constante, é a escrita poética, sendo de destacar Canto Viageiro (1981), Incertos Dias (1986), Marca de Água (1996) e A Seda das Palavras (2004), título que retoma em parte os anteriores, a que foi acrescentado um lote de poesias inéditas, «Poemas para Cibele».

De seda se vestem as palavras deste último título, depois de ensaiado o «canto viageiro» e ultrapassados «incertos dias» de um quotidiano a que o eu poético soube apor a sua «marca de água», sob o olhar atento, «húmido» e «brilhante» de Cibele. Palavras atravessadas por um toque de delicadeza, sensibilidade, sentido lírico. Palavras de amor, desejo, partilha, ternura, inquietação, busca, num navegar poético por rotas ora originais ora revisitadas, entre um presente calmo, de aceitação de um destino inevitável, e um passado pontuado por afectos vários, delineando o «percurso percorrido» de uma viagem incessante. Viagem ou viagens, já que ao longo do livro a viagem é tema recorrente, assumindo diferentes planos e simbologias.

Palavras de seda em festim de polissemias, vestindo os sentidos: a visão, o toque, o olfacto. Através delas desenha-se um retrato na sua dimensão de corporalidade, retrato de contornos finos, sobressaindo rosto, olhos, lábios, mãos, veículos de expressões de afecto e desejo. Os sentidos balizam grandemente esta poética, desaguando em momentos de ternura e sensualidade, esta, por vezes, mais pressentida do que dita. O eu poético vive permanentemente do contraponto do tu, nomeado ou não, latente, vivo, omnipresente. Um tu maioritariamente singular, objecto da memória, da paixão, do desejo e das obsessões do eu.

O olhar do sujeito poético espraia-se do corpo ao espaço em seu redor, espaço quase sempre litoral que se funde, amiúde, na memória de vivências amorosas. São abundantes os elementos naturalistas, surgindo em jogos antitéticos ou complementares, plenos de simbologias, como a água, o fogo, o sal, a luz, a noite, o dia, o luar, o mar, o rio, o calor, o vento, o tempo, o sol, a lua, a terra, a ilha, a raiz, o arco-íris, a areia, onde se escrevem «palavras que o acaso não esquece». Aqui e ali respira-se o perfume da giesta, da malvasia, de uma flor; sente-se o sabor a cereja.

Alguns destes motivos surgem como obsessões lexicais do poeta, repetindo-se ao longo do livro, vestindo diversos sentimentos e servindo reflexões várias, dando a ver um sujeito inteiro, vivendo, entre estações, o tempo de ser criança, o tempo de amar, o tempo de sonhar, o tempo de todas as mudanças, o tempo de desiludir-se, o tempo de redescobrir sentidos e afectos, tempo que é «escanção dos sonhos» e dá à vida, à medida que vai sendo vivida, diferentes perspectivas.

A persona poética vai-se questionando, desenhando percursos, manifestando inquietações. Reflecte sobre poesia, afirmando que «a geometria do poema é hexagonal», constituindo-se como objecto fechado nos limites da sua especificidade, levando-nos a reparar em alguns aspectos formais, com destaque para a dimensão estrófica, balizada por grande contenção. Os poemas são geralmente curtos, lembrando alguns deles a concisão dos haikai. Apenas a última parte do livro, «Poemas para Cibele», contraria esta constatação, já que os poemas que a constituem são um pouco mais extensos, sem, contudo, chegarem a ser longos.

O tom coloquial de alguma desta poesia coexiste com o gosto pelo uso de vocábulos menos habituais. Surgem mesmo expressões que actualmente só têm uso literário, como «ledo» e «coita de amor». Essas escolhas ao nível da linguagem fazem-nos ouvir outras vozes, presentes ainda em sonoridades, motivos, ideias, temáticas, mitologias, sentidas como raiz mais ou menos consentida, mais ou menos assumida.
É em «Poemas para Cibele» que o reflectir sobre os limites do ser humano é mais sentido. Aí, a par da redescoberta dos sentidos, tudo converge para a aceitação serena da grande caminhada que é a vida. O confronto entre o amor e a finitude, um dos tópicos universais da poesia, confere a este livro uma certa dimensão de busca da intemporalidade poética. Talvez por isso haja quem vislumbre uma certa tonalidade clássica em alguns destes poemas.

No final deste canto viageiro de uma voz poética que tem atravessado moradas diversas, é o amor que nos surge como ninho. E o poema diz-nos que o sujeito poético continua a olhar os sentimentos como «húmus», como «campos de semeadora», acredita neles, e, apesar de conhecer os seus limites, permanece aberto ao sonho, à viagem, ao amor, à efemeridade, enfim, à vida.

Fátima Ribeiro de Medeiros
IELT, FCSH - UNL